quarta-feira, 9 de setembro de 2015

08.09.15


   Entrei há pouco em meu apartamento. Eu quase que não me lembrava dessa sensação de fechar a porta e, do lado de cá, poder finalmente desabar. Olho com profundidade para o espelho e enxergo uma mulher com olhos de susto e rosto encharcado. 

   Não sou de descrever dias, mas nesse exato instante não sei mesmo do que sou, e algo me impele a fazê-lo... Talvez [quem sabe?] pra desabar mais um tantinho. Aliás, não vou descrevê-lo, apenas direi em sequência rápida o que se passou: uma viagem de madrugada/quase amanhecendo com chuva [embora sem percalços, sempre traveste meu corpo de certa tensão], uma árvore caída sob uma fiação e o corpo de bombeiros bem em frente ao meu prédio [sem energia, o caos se instaura, e corro pela rua e pelas escadas para deixar a Faísca a tempo em casa], uma respirada profunda ao entrar no carro tentando não me atrasar para o estágio, numa parada perfeitamente rotineira de rotatória [quase chegando], um carro colide na traseira do meu [o barulho e o tranco me fazem pensar que a coisa é um tanto séria], abalada chego no estágio e tento manter a calma para ser prática na resolução do problema, dado o tempo de minha saída vou à PM efetuar boletim de ocorrência [sinto-me o pior dos burocratas, mas não posso dar-me o “luxo” de sentir], saio correndo do posto da PM pois o céu está enraivecido e vai castigar, entro no carro e os primeiros pingos-pesados começam, ligo o carro [estou estacionada numa rua íngreme, entre dois carros], ao dar ré, meu pneu estoura e meu carro vai todo para a frente, avançando por sobre a calçada e sendo segurado pelo carro da frente, um casal [de anjos?] vem me ajudar, ambos auxiliam-me a empurrar o carro pra trás para desencostar do da frente e colocam um toco de árvore na roda traseira para segurar o carro [o freio de mão não é capaz de segurar], o céu resolve desaguar pra valer, o homem-anjo me sugere entrar no carro, mostra-me onde é sua casa, e diz que assim que a chuva diminuir um pouco ele virá me ajudar com o pneu, um pouquinho de trégua da chuva, e o homem-anjo reaparece, enquanto troca o pneu para mim a chuva retorna, ele permanece sem cessar e com um sorriso no rosto trocando o pneu de uma desconhecida em meio ao aguaceiro [aguaceiro forte], aquela cena me aperta o peito ainda mais, tenho vontade de chorar [por todo susto, por minha própria fragilidade e pela beleza da generosidade daquele gesto absurdamente humano], revelo-lhe minha gratidão indizível e este homem em meio a um abraço forte me diz que a vida é assim “hoje ajudo você, porque sei que amanhã, se você puder, você ajudará a um outro”.

   Este homem se chama Cícero. E de tudo, Cícero é o que mais me interessa. Cícero não só me ajuda, Cícero amansa minha solidão de ‘homem’ em tempos em que os umbigos esqueceram-se de seu passado de cordão. 

   Não nego que ainda agora sinto os resquícios do tremor do meu corpo e que minha respiração custa a se acalmar, não nego também o desejo ardente de um colo que me ajude a restabelecer meu juízo. Sei que hoje dificilmente irei dormir. Mas o sono não me importa, não preciso recorrer aos sonhos, pois re-acredito nos laços humanos devido a personagens como Cícero... personagens da vida firmemente ancorada no real.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Da caixinha de madeira sem cor.

Suspeito que todo mundo tenha algo guardado, bem guardado. Guardado numa caixinha de madeira sem cor, que mora há muito tempo no fundo do armário, do armário do quarto daquela casa das primeiras experiências [ah, as primeiras experiências...].
Essa suspeita mesmo se encontrava guardada na minha caixinha, e para quantas proximidades, compreensões, reconhecimentos e destinos outros ela já me levou... [uma série incontável]. Sinto que, desde quando muito pequena em idade, ao olhar com fundura para outros olhos, mergulho sem razão na busca por imaginar que espécie de coisas [de coisas vivas e vividas] estão guardadas na caixinha do fundo daqueles outros olhos.  Nem sempre são agradáveis os lugares que visitei na ânsia de encontrá-la, e, devo dizer, tem gente que a esconde [a protege] quase que com raiva, com amargura. Eu confesso que já me machuquei muito nessas minhas andanças de fundo de olhos, e na maioria das vezes, não cheguei nem próximo de encontrar alguma coisa. Mas existe mesmo uma certeza íntima, uma certeza estranha [e que por vezes me vejo tentada a maldizer], de que ela existe e de que tem coisas guardadas ali... Tenho cá uma voz interior que me assopra delicadamente, embora com firmeza, no ouvido que ninguém pode ter uma caixinha vazia, e que, num mundo de tantos julgamentos, de tantos dedos apontados, é mesmo bastante difícil que alguém não guarde secretamente a sua caixinha de essenciais.
       Hoje, desprevenida [como tinha mesmo de ser], encontrei a minha. Foi tocante, tocante ao ponto de molhar os olhos. Foi também um tanto desconfortável [será mesmo que o passado é uma roupa que não nos serve mais?]. Uma experiência dolorosa e alegre, tal qual a experiência de nos olhar sem proteção para o espelho. Tem muito ali que eu gostaria de fugir, de esquecer, de ignorar, de negar, de rejeitar, de expulsar pra fora da minha caixinha. Mas seria uma atitude tão tola! O que subsiste no fundo dos olhos a gente não tira, e vai saber se não são exatamente essas coisas que, paradoxalmente, lhes mantém o brilho? Sinto que fiquei ali a encarando por horas [dias, meses, anos, décadas], e encará-la era transcendê-la...
      ... E talvez seja disso mesmo que ela viva, de oferecer-nos a possibilidade de nos olharmos sem reserva, de nos demorarmos em nós, e quem sabe, exatamente assim, transcendermos a nós mesmos [não de todo e sempre, obviamente]. Até porque, simplesmente negar o que não conhece de si, é permanecer incessante e justamente naquilo que se nega.