domingo, 23 de junho de 2013

um vai e o outro fica.

Telefonema para avisar-me que a afetuosa “Tia Dia” se fora. Na estrada, o pensamento rotativo.
- Algo me faz ter certeza de que lá eu tenho que estar -


(... cheiro forte de flor, de flor viva.)


“Marina, que farei sem minha véia?”
        E foi assim que, naquela tarde fria, se apresentaram para mim aqueles olhos suplicantes de uma face já enrugada. Olhei-lhes a fundo. Os olhos se encontrando, não contiveram as lágrimas. Ofereci-lhe meu mais sincero abraço, dentro do meu mais inquieto silêncio. Aquele silêncio de quando o sentir, o pulsar da vida é tamanho, que se veem inundadas (e encharcadas) todas as palavras de nosso limitado vocabulário.
       No toque com aquele corpo frágil, no encontro de sua lágrima com minha pele, compreendi profundamente que a viuvez daquele senhor não significava somente uma mudança de estado civil; sua viuvez era um estado de alma.
     Diante da cena de uma separação sem escapatória – sem nenhuma nova chance, sem nenhuma outra oportunidade – e da dor mais que profunda daquele homem, já sem sua companheira de vida (e forçado a seguir), que me deparei com a essência disso que nomeiam de amor.
        Confesso que tentei reter meu pensamento para as circunstâncias que fizeram aquelas duas personalidades tão distintas (ele tão rabugento, ela tão doce) se encontrarem e se manterem unidas.
        Sim, um casamento tradicional. Sim, uma construção social.
     Mas ainda que tudo fizesse minha razão apontar para uma quase imposição para ambos daquela permanência enquanto dois; a dor dele só fazia meu sentir apontar para a escolha diária daquela ligação. Nada ali lhe deixava mentir: ele escolhia diariamente aquela mulher como sua companheira.
        Era o andar junto que lhe dava força aos pés.
     Compreendi que a separação mais dolorosa é esta que se impõe como fruto do tempo, separação esta, que não é consequência das circunstâncias por nós criadas – frutos de nossas escolhas (conscientes ou não).
        A separação mais cruel é que provém da constatação de que um dia, um vai e outro fica.

Pode a vida apresentar coisa mais bonita e mais atroz que essa constatação?
Um vai e o outro fica.


terça-feira, 11 de junho de 2013

O retorno da miscelânea mental.

A pele arrepiada denunciava frio. Olhei o teto demoradamente e levantei-me. Despi-me. Fui nua até o espelho mais próximo e inspecionei cada milímetro de meu corpo. Acho que engordei. Já no banheiro senti-me enjoada e fiquei poucos minutos de cócoras frente ao vaso sanitário. Certamente um raciocínio julgando-se certeiro me diria: deve estar grávida. Para este, me viria somente uma resposta para apaziguar-lhe o espírito: impossível, não estou fértil. Se bem que... um filho talvez fosse legal. Uma companhia. Um grito ensurdecedor da criança que mora ao lado vem promovendo rupturas. Não, possível criança que ainda não existe, não se assuste. Como posso querer uma companhia na infertilidade, não é mesmo? Pergunto a um terceiro: você me acha louca? Não sei, a pouco deixei que me convencessem de minha loucura. Todo monólogo interior fluído que me toma. Todo enjoo. Toda criança. Todo arrepio. Toda frieza. Toda extrema sensibilidade. Toda flor da pele. Retomo e tenho a certeza de que estavam certos. Vou para debaixo do chuveiro. O frio prossegue. Coloco-o no modo desligado. O enjoo aumenta. Hoje faz sete anos que você se foi. Ano passado eu pude chorar mais a sua falta. Eu ainda estava sendo tomada como louca. Desliguei a razão. Não sei se acredito nela. E escolher da mesma meu instrumento de trabalho talvez seja o protesto de minha irracionalidade, minha resistência. Não tenho ciência, temo a Ciência. Resisto ao frio. Eu nunca senti verdadeiramente frio. Você já sentiu? Pergunta incômoda. Não gostam das minhas perguntas. Hoje a rede de esgoto da casa entupiu. A casa inteira cheirou a esgoto e evidenciou a podridão. Ao lado do último lugar em que morei, em outra cidade, se encontrava uma caixa de gordura. Ali se instaurava a sujeira de todo o condomínio. Vez ou outra alguém limpava. Vez ou outra eu me dava conta de como eu sou suja. E era impossível tirar tal constatação dos meus dias. Sai de lá, talvez como louca e pesada, mas não como suja. E eu sou mesmo suja. Outra constatação para essa noite fria: moro novamente próximo ao cemitério e à Avenida Saudade. O grito das crianças tem razão. Ter um filho não é uma boa ideia. Não se pode ser companhia na infertilidade. 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Riscos.


Minha cabeça girava, girava em tamanha velocidade que me causava náuseas.

Procurei distrair-me
(“Distraídos venceremos”).  

Sentei e sorri... Parecia-me a única forma de terminar dignamente o dia.
Encostei levemente meu lábio naquele copo e uma voz conhecida me alertou: “Você está correndo risco!”.  

Engoli o líquido a seco.

Eu sei - eu sempre soube - o perigo me espera ali na esquina. Mas não!...Não naquele momento! 
Repetia mentalmente:
“Eu corro risco!
Corro, corro, mas nada me alivia do maldito risco!”.

Tentei convencer-me da facilidade que envolve levar os dias adiante... Porém, bem sei, o risco leva ao medo, e o medo paralisa.
Você sente o significado do pânico, da pane? Eu vivi.


Entretanto, era preciso seguir. 
  Penso que meus caminhos sempre foram e sempre serão tangenciados pelas muitas (e grandiosas!) dúvidas. Dúvidas quanto ao que fui e ao que foi, ao que sou e ao que é, ao que serei e ao que será. E nessa linha tênue entre meus caminhos percorridos interiormente e as trajetórias pedidas pelo exterior, procuro achar um pequeno equilíbrio nessas maneiras de fazer-me. 
   Saber que os lugares, as situações e as relações são também o que delas fazemos, me liberta e me assusta. Escolhas são mistos de libertação e esvaziamento.
   Observo-me em meio a traços e a gestos, nem todos conhecidos, identificáveis, interpretáveis. São maneiras. São outros. São possibilidades e impossibilidades de ser-me e ser outros.

domingo, 2 de junho de 2013

Perceber que, para além de todas as feridas que produzimos, as marcas que prosseguem em nossa pele ainda revelam o que nos ultrapassa...

E o que nos ultrapassa escapa desse círculo vil – repleto de condições insalubres - em que estivemos imersos.


Nada ali propiciou possibilidade de escolha pela sobriedade, éramos embebedados r o t i n e i r a m e n t e pelas relações doentias (que prosseguem se estendendo, se repetindo, naquele lugar).

Aquele lugar...
Aquelas relações...

Escapam-me.

Escorre por entre meus dedos, o que um dia escorreu pelos meus olhos.

Nada se pode fazer por aquela gente.
É naquilo que eles acreditam se fazer... Ainda que, em seus olhos, eu só consiga enxergar, o quanto se desfazem.

Fecho os olhos, forço a cabeça em minhas tentativas de compreensão, de entendimento.

Escorre.

Tudo ali escorre, é líquido,

Escapa.

Todos tentam algo em que se agarrar.

Mas nunca me pareceram cogitar se agarrar no valor do cuidado e da construção.



"O amor é um combate, vou lutar por muito tempo. Até o fim"

(KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. p. 126)