quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A obscena senhora D.

“Me vem também, Senhor, que de um certo modo, não sei como, me vem que muito desejas ser Hillé, um atormentado ser humano. E SENTIR.” 
e adentrando no viver que pulsa daquelas palavras encorpadas e flutuantes. palavras que adquirem materialidade profunda, e que, ao passo que questionam, entregam-se a própria materialidade...como eu. como eu? como eu, que às vezes, não sei se existo ou se isso tudo não passa de uma ilusão, de um sonho. mas ilusão de quem? quem está a sonhar, a perguntar, a desejar? para iludir-me, preciso decretar que existo. “Engasgo nesse abismo, cresci procurando". cresci me reconhecendo nessa senhora D, nessa obscena, nessa porca senhora! como posso sentir que materializo um personagem que, dentre tantos sentimentos, me causa repúdio? talvez seja mais comum do que eu penso sentir repúdio e extremo amor por si mesmo. por nossos processos inexplicáveis e desconhecíveis. talvez seja comum... mas os comuns não conversam - ou não conversam comigo? -. guardam para si, para seus cantos obscuros suas questões mais obscenas. ninguém se conhece. nem a si, nem ao outro. será que outros também se perguntam se realmente existem? metafísica barata. "um dia me disseram: as suas obsessões metafísicas não nos interessam, senhora D, vamos falar de homem aqui agora". vocês também, às vezes, paralisam diante do aqui e do agora? do não saber o que fazer consigo, o que fazer de si? mas tem de prosseguir, elegante senhorita! ou me seria, senhora? “Senhora D, a viva compreensão da vida é segurar o coração. me faz um café”. mas que papo é esse de coração? como segurá-lo dentro do peito quando ele grita? como pausar o grito para tomar um café? “o corpo é quem grita esses vazios tristes.”. foram tantas as vezes que fracassei nas tentativas de calar o corpo. e de calar os pensamentos, também. perco as contas. finjo acreditar que possuo controle.  “Ela Hillé, revisita, repasseia suas perguntas, seu corpo. O corpo dos outros.”. revisito com ela a experiência de me entregar. de trocar o mar pela corredeira. os arrepios do corpo parecem ser distintos. origens várias que se confundem, que me confundem. “ainda isso é pleno e basta para a vida, Hillé, perguntar não amansa o coração.” paixão. bonita palavra. não seria tudo resumível à paixão? não seria esse nosso próprio nome? poderíamos todos nos entre-chamar assim. porque não nos basta o respirar, o sentir?  “perguntas, perguntas, como se fosse simples isso de amar, como se o peito soubesse desse adorno, como posso saber se a alma não compreende? a alma sente. a carne é que sente.” eu sinto. esqueço de quem fui, de quem sou. preciso também de descanso. de colo quente e firme. nosso mal é a solidão? e que criatura humana não é, também solidão? me agarrar em algo, em alguém. que mal há em apegar-se a algo ou a alguém, para vivenciar a própria loucura sobriamente? em encontrar subterfúgios no corpo e na mente para manter-se são, para manter-se lúcido? todos procuramos caminhos. todos recorremos a obscenidades várias. obscena é própria vida.
“[...] e o que foi a vida? uma aventura obscena, de tão lúcida.” 

*trechos extraídos de "A obscena senhora D.", Hilda Hilst.
  
   

domingo, 24 de agosto de 2014

Fluxo.

“A vida não é argumento; entre as condições da vida poderia estar o erro.” (NIETZSCHE, 1978, p.202)

queria prosseguir a pensar. a cabeça, à essa altura, já estava estafada. lembrei-me de ser, também, corpo. entreguei para o corpo a tarefa do pensamento. o não-pensamento do corpo. falar tinha de ser experienciar. eu nada tenho a dizer, enquanto não digo. eu nada posso ser, enquanto não sou. sinto. personagem. todos os outros que contenho, que acolho em mim. todas as lutas que me sensibilizam. e as que não. por que não? todo santuário que passa pela matéria. e que apodrece. corpo que transcende de tanto ser corpo. vivenciar esse momento-limite enquanto instante crucial, fundamental. fotografá-lo com retinas não-retilíneas. curvar. curvar-se. todo mistério e toda fé. entrelaçar de dedos. dar-se as mãos. doar-se para a experiência, para a comunhão. negar separações; bestas, bestiais. comungar consigo; seu corpo, sua pele, seu suor, seu sangue. ritual de fé. de purificação. de proliferação. 

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

“Aventura nunca tentada, navegar o convexo do olho sem quebrar segredo, nem casca.”


hoje eu voltei a colocar aquela camisola. meu corpo já é outro. ela, ainda a mesma. tentamos nos ajustar. a felina me chama para a caça. e eu quase que sinto vergonha de lhe confessar que não sou da caça. apesar disso, me reconheço em bicho. tatear no escuro.  o prazer inexplicável do desconforto. me forço à solidão? “eu bestando numa vida antiminha”. eu neguei aquele brinde que ofereceu a nós. neguei por tédio. um desconhecido se aproxima. me julga e me aponta as covardias. não é por humanidade que o faz; é por prazer mesquinho, também covarde. não desisti. não se desiste da ação que nunca se topou executar. a despeito de, não abortar os possíveis. tornar a ação fluída, não obstruída pelo pensar incessante e cruel. desconstrução. para que o valor prossiga sendo a construção. “a vida pulsa, pulsa, pulsa...”. é o que me diz o tic tac do novo relógio. escrever, escrever, para não se perder...nunca mais. 

domingo, 3 de agosto de 2014

duas lições (ou uma só).


chamem de destino ou do que quer que seja. fato é: há de se aprender a ser humilde frente aos mandos e desmandos desta vida.
(“hei de aprender. hei de aprender. hei de aprender...” repito como um mantra).
há vezes em que não há o que ser feito.
aceite? aceite.

solidão é bacana em momentos tais. mas autossuficiência é papo pra boi dormir. talvez a presença de um outro me ajudaria no jogo de forças contra uma ou outra imposição da vida.
(“interdependência. interdependência. interdependência...” repito como um mantra).
preciso do outro para lutar, para inverter jogos.
hoje eu perdi? hoje eu perdi.


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

retrato.

tem ódio, tem doçura nestes olhos que me encaram. me provocam. me jogam com violência no mundo. num mundo hostil coberto de humanos. num mundo humano coberto de hostis, de ardis. em silêncio, pareço-me concentrar no enigma da esfinge; em poucos segundos, o jogo vira...o enigma sou eu. é aquele rosto que quer me descobrir. retrato imóvel que me ofende. me declara culpada, pecaminosa. do quê me acusa? o quê me sugere? me sinto presa de uma pesca covarde; uma pesca com rede. mais alguns segundos e eu morro asfixiada. meu próprio retrato. meus próprios olhos. 

quinta-feira, 24 de julho de 2014

vou explodir! não fará barulho, não farei alardes....
vou explodir de e em singelezas.
é desejo do peito gritante por ampliação, é grito rouco de alma que transborda.
vou explodir por estado pleno de poesia, por embriaguez pela força dos encontros humanos, por pulsar de vida. por pulsar de vida dentro de mim.
vou explodir por vontade desconhecida – e insaciável – de desconhecido. vou explodir para o passo a frente, para o passo além. vou explodir para ser jogada no caminho escuro, para apurar os sentidos, para sorrir sorriso de doer maxilar.
vou explodir para em conflito alcançar minha paz. vou explodir por resposta de meu corpo, de minha alma à todas as convocações da vida.
vou explodir rasgando o peito com minhas próprias mãos, vou explodir em gargalhada idiota e escandalosa, vou explodir em choro soluçado. vou explodir misturando, fundindo, fluindo.
vou explodir para caber mais. para sentir mais. para ser mais comunhão comigo e com o outro.
vou explodir para entrar mais luz vermelha de pôr do sol.
vou explodir para não me importar com o doer. vou explodir para respeitar absolutamente o doer. 
vou explodir em reverência à alegria, à tristeza, à beleza.
vou explodir por amor intenso ao viver. 

domingo, 13 de julho de 2014

impaciência

esperas me fazem muito mal. impaciente, deixo de me ser.  deixo de demorar-me sobre mim. torno-me bem pior, quase odiosa. (....sucede-me agora a ideia vaga de que, talvez, boa parte dos suicídios nascem das impaciências).  transformo a situação, desconfiguro os fatos, mancho a imagem.  não sou eu.  sou eu. quem sou? quem é ela? heim? tomada pela impaciência. machucada. despersonalizada. interditado o meu silêncio (...que é coisa sagrada; apesar de eu, profundamente, cultuar o caos). ouço muito falatório. só filtro as ofensas, quando consigo filtrar algo. e não filtrar, é decididamente a pior ofensa que me faço. 

segunda-feira, 30 de junho de 2014

"Mas não foi."

De tudo fica uma lembrança.

Em dias como este, em que me aconchego numa caneca de café quente, nos livros que  me esperam e no carinho do costumeiro ronronar da felina que me acompanha, maiores parecem aquelas lembranças que se guardam sabe-se lá porque. Lembrança de um dia não tão besta em que uma frase disse menos do que ficou a impressão que se quis dizer. Certamente menos do que, à época e às circunstâncias, poderia ser ouvido, sentido, quiçá experenciado. O subentendido chacoalha uma cabeça solitária... um corpo solitário. A escolha de se estar sozinho torna-se menos suportável do que verdadeiramente é. O “E se...” surge arrebatador e pouco consolador ao sussurrar : “Mas não foi.”.  

quarta-feira, 4 de junho de 2014

“Quando a gente sofre não tem sofrimento nenhum que se compare com o da gente, nem a tristeza enorme que escraviza o mundo...” [foi o que li]

Entre tufões, explosões, guerras, injustiças, misérias
e toda sorte de dor espalhada por entre as gentes...
Eu.
Eu, que não subtraio de mim a dor geral.
Eu, que não aprendi a subestimar a particular.
Eu, que não trago boas novas.
Eu, que pouco posso fazer....
[Que “tenho as mãos atadas ao redor do meu pescoço”]
Eu, que queria... Mas, no fundo, não podia.
Eu, que amo além de mim.
Eu, que amo aquém de mim.

Pessoas ou indivíduos, somos nós, seres humanos?
Que porta abrir primeiro, quando duas estão chamando?

Somos quê?
...quase nada.
Apesar de sermos convocados,
cotidianamente,
...a interferir.

Mas como? Mas como?


Mas como?

segunda-feira, 28 de abril de 2014

o vencedor.

A foto
[pela inconveniência que o destino certas vezes toma para si]
voltara a ser
vista
relida
ressentida.

Ela:
atenta
absorvida
mergulhando.

Ele:
distraído
espalhado
boiando.

“Distraídos venceremos”
diz o poeta curitibano.

E como
o aroma
o aspecto
e o dissabor
de jogo
foi se impondo,


Presumo que haja um vencedor. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

cena de um cotidiano (comum).

depois de cumprir o compromisso que criei instantaneamente no intuito de ter uma desculpa que convencesse a mim mesma a botar as fuças na rua...a volta para a casa. mas, a vontade já se tornara outra. eu não queria mais voltar a enfurnar minha fuça naquela casa, pelo menos não naquele instante. a cabeça estava cheia, o peito esmagado. não havia mais nada a ser feito senão ouvir, ouvir, ouvir. ouvir um e depois ouvir o outro, quem sabe até o momento de explodir.

o sinal fecha. olho para a frente sem nada olhar. (o mundo rodava, era a labirintite ou a pinga vagabunda que eu tomara?). vejo dois corpos - entre tantos - atravessando a faixa de pedestres. o sinal abre. sigo a seta que eu mesma sinalizei (confesso que cumpri toda a curva só para calar aquele tic tic irritante). viro à direita e permaneço no lado direito. percebo que meu pescoço se inclina totalmente na mesma direção que meu olhar – que, sem razão alguma, ainda acompanha aqueles dois corpos. como pedestres parecem seguir o mesmo caminho que eu. um deles também me acompanha com os olhos. desvio o olhar rapidamente - para impedir o acidente que, naquele dia especialmente, eu estava mais do que propícia a causar. volto a olhar. agora é só um. e prossegue me acompanhando. piso bem leve no acelerador, diminuo a marcha. aquele homem acelera o passo. mais um sinal fechado. ele também pára. sorri fechando os olhos. é bonito. quando me percebo, eu também estou sorrindo. (que vontade de ficar por aqui, de passar a tarde toda assim). o sinal abre. penso em parar. penso em abrir a porta e convidá-lo para entrar. ele vem se aproximando como se, nesses segundos de tomada de decisão, ele soubesse minha dúvida e estivesse pronto à cessá-la. sinto medo. sinto vontade. me enxergo como ser desejante. desejante de arriscar. desejante de esquecer. desejante de - por algumas horas - ser só indivíduo que cumpre seu próprio desejo. viro a esquina afim de dar a volta no quarteirão e voltar para aquele mesmo ponto. o ponto em que minha cabeça rodopiante reflete sobre ficção e realidade. sobre realidade criada que pode parecer roteiro de ficção. sobre ficção acreditada que pode parecer cena de um cotidiano comum. faço esse caminho. ele ainda está ali, e o sorriso se rearranja no rosto quando vê meu carro descendo a mesma. sigo ainda mais devagar. o sinal não vai fechar. não dará tempo de conseguir pegar o lado direito para virar. não vou consigo parar. ao mesmo tempo, consigo ler em seus lábios “por favor, pare.”. eu não posso parar. eu não consegui parar. fui embora sem saber. sonho não era - a rua permanecia igual, todos seguiam o mesmo ritmo dos afazeres rotineiros, a casa que eu entrei prosseguia pesada. nada estava desfeito. sonho não era. voltei para a casa, trazendo de volta somente a covardia. covarde! covarde por não se permitir desejar.

domingo, 19 de janeiro de 2014

a alegria é delicada.
delicada tal qual a própria constatação.
frágil. frágil mesmo.

acho que nunca percebi a alegria. medo de, na tentativa de represá-la em memória, acabar por perdê-la. mas sinto (quando absorta nesses pensamentos) que alguma coisa aqui dentro grita. talvez um sentimento de que sei exatamente o que é sentir alegria. escassos flashs mentais de instantes de sorriso espontâneo, incontrolável. sorriso secreto. secreto, secreto sim. hoje em dia, raros os que se dedicam a distinguir sorrisos. a desnudar realidades. a se aprofundar nas revelações súbitas. talvez nada revele mais do que um sorriso incontrolável – ainda que tímido. sorriso dos olhos. instante de olhos marejados e risonhos.



quão delicada e frágil é a alegria. tão fácil desgraçá-la se imediata é a percepção de se estar experimentando. melhor guardar em segredo. se possível até de mim mesma. deixe que me venha aquela  (posterior) sensação interior e gritante... tirando-me um sorriso de olhos categoricamente incontrolável.