sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Jerónimo.

"Quando beirava os 73 anos, Jerónimo, o avô materno de Saramago, sofreu um acidente vascular cerebral. O infortúnio não parecera tão grave de início, mas depois se revelou preocupante. O médico recomendou, então, que o paciente abandonasse a aldeia onde morava e se internasse num hospital de Lisboa. Jerónimo - um homem rude, analfabeto, que criava porcos - dividia com a mulher uma casa simples, de apenas dois cômodos e chão de barro. No quintal, plantara umas quantas oliveiras, figueiras e pereiras. Mal a carroça que o levaria à estação ferroviária chegou, o velho, pressentindo que não retornaria, saiu do casebre e abraçou cada uma das árvores. Não emitiu nenhuma palavra. Somente chorou baixinho e enlaçou a minúscula floresta. 
O episódio me impressiona sobretudo pela contenção. Para se despedir dos seres mansos e quietos que lhe encheram os dias de sentido, o camponês optou por um gesto igualmente manso e quieto. Não lamentou o rumo que as coisas tomaram, não amaldiçoou as transformações que presenciava nem as que deixaria de presenciar, não fez elogios às árvores, não recordou os bons momentos que compartilharam. Resignou-se em dizer tudo o que gostaria sem dizer nada. Ironicamente, tempos depois, o neto de Jerónimo se notabilizaria justo pelo contrário: pela necessidade incontornável de atar a vida às palavras. Não quaisquer palavras, é claro, mas ainda assim palavras - e copiosas, fluidas, abrangentes.
Ocorre que em determinadas circunstâncias, ações similares às do avô tem impacto maior que posturas como as do neto. Há despedidas que não encontram tradução. O que falar diante de um amigo que se muda para bem longe, um amor que morre, um projeto querido que se interrompe? Às vezes, o melhor - o mais preciso e eloquente - é dar adeus em silêncio."
(trecho da Carta de Redação do último exemplar  - nº 192, agosto de 2013 - da Revista Bravo! cuja reportagem de capa homenageia José Saramago).


como mostra a referência que coloquei abaixo do trecho transcrito, essa revista chegou a mim em agosto de 2013. até o dia de hoje - já no centro do mês de novembro - eu a olhava e postergava essa leitura. hoje li. hoje, quem sabe, eu compreenda algo, mesmo que de forma pouca.
devo dizer, as palavras referentes ao lidar com o adeus, já me diziam respeito desde 2006 (isso se já não é possível dizer que o adeus nasça conosco no momento do próprio parto e nos acompanhe até o fim da vida). como uma bactéria alocada, porém não manifesta, convivi com elas. ano passado, também por elas  (por que não acredito em reduções fáceis e baratas), adoeci. dores não explicáveis, dores não detectáveis, dores não compreensíveis; dores não traduzíveis, enfim. 
após esse episódio- e algumas justamente por conta dele - outras despedidas me chegaram. mas ainda assim, eu não seria capaz de me encontrar tão integralmente - tão completamente - nessas palavras; me encontraria em partes, certamente. me emocionaria, mas isso ainda não me levaria a compreensões.

como alguns sabem, minhas digestões são demoradas. 

fim de outubro de 2013: mais um adeus. não qualquer adeus. adeus que me faz retornar à 2006 e reviver anos passados, anos experienciados, anos vividos, anos de pele, anos de alma, anos de entrega - no que mais se encaixa ao que acredito que deva ser estar aqui, em vida. 

com a partida de minha avó, outras despedidas difíceis me chegam em lembrança. 

seus últimos anos lhe impossibilitaram a fala. quanto a mim, tagarelei durante esses anos ao pé de sua cama. o último dia que a vi (ainda viva), minha escolha - já no sentimento de que naquele momento era preciso que eu lhe dissesse adeus - foi pelo silêncio.
mesmo no momento a sós com o papel, eu já não sentia aquela comunhão tão forte com as palavras - a algum tempo venho sentido essa distância. 

nem todo adeus me ocorreu em silêncio. em momentos senti necessidade do "adeus em silêncio", em outros senti necessidade de dar "adeus ao silêncio". 
longe de colocar minha relação com as palavras em pé de igualdade com Saramago ou com Jerónimo, entendam. longe também de concordar que o silêncio é sempre brando, manso e calmo - na maior parte das vezes, o meu se constitui exatamente no contrário.

me boto a pensar nessas vivências que ultrapassam compreensão e tradução. me boto a pensar nas maneiras de lidar com a dor - e também com a alegria! -. me boto a pensar naqueles que tem por constante necessidade vomitar palavras. me boto a pensar naqueles que tem por constante necessidade engolir silêncios. me boto a pensar em imposições de um suposto destino. me boto a pensar no potencial de nos refazermos, de nos recriarmos. 

seja com o suporte das palavras, seja com o suporte do silêncio, tudo é maneira de lutarmos por sentido, de nos comunicarmos com o vivido e com as potencialidades do vir-a-ser. 


domingo, 27 de outubro de 2013

eis que mais uma vez se apresenta ante mim esse mistério. mistério que inquieta, que dói , que corrói. dói porque, de alguma forma, nos tira (nos arranca à força melhor dizendo) algo, nos tira alguém. 
a morte – por mais estranho que nos possa parecer – vem, nesse instante, com um gosto de conforto; acredito que por finalmente nos dar a sensação de que oferece a paz para quem tanto a pedia, para quem tanto a merecia.
esse período de transição entre vida e morte foi extenso, foi duradouro. colocou-nos todos frente a frente (e de maneira inescapável) com questões essenciais - e não há como negar como foi difícil poder encará-las sem dor; assim como é difícil encarar a vida,  assim como é difícil encarar a morte.
peço apenas aos dias que virão que mantenham vivas na memória a imagem (e na pele, a sensação) das mãos que me deram meu primeiro banho, e dos olhos que, encantados, vivenciaram comigo nossa primeira vez diante da assustadora imensidão do mar.  
(mar e imensidão que ainda assustam e que ainda se mostram como esse mistério que agora vivencio.)
quem sabe hoje a senhora não consiga alcançar melhor todas essas coisas que tanto me escapam?

estou certa de que o tempo irá fazer com que eu consiga pintar todas as lembranças que vierem com os tons das heranças que me deixas.


vá vó, vá em paz se juntar ao nosso véio caipira

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

sentei exatamente ali. em meio à fumaça. olhei para uma de minhas mãos. embora houvesse ansiedade em cada poro de meu corpo, ela não tremia. mas suas veias estavam visivelmente saltadas. imaginei-me mais velha. talvez algumas rugas me embelezassem. num gesto forçoso, joguei a cabeça para trás. olhei para o céu, com os olhos ainda fechados. mas eu sabia que o céu estava ali. abri-os. a claridade doeu, a claridade rasgou. não os fechei mais
...e assim decidi ficar, até quando as rugas chegassem.  

sábado, 5 de outubro de 2013

recriar.

pensei, nesta noite tão oca, em convidar alguém – um qualquer alguém – para conversar. no entanto, olhei para a folha em branco. e neste ato, decidi redescobrir o prazer. redescobrir o prazer de escrever. em que capítulo da vida ele se perdeu? onde foi que criei para mim mesma uma barreira intransponível? limite não existe por si só. não existe limite para a dor, para o amor, para a imaginação, para o corpo, para o pensamento; não existe se não o criarmos. saber discernir o momento em que o limitar é atitude desejável e saudável, e o momento em que ele é, tão somente, castração. pular a cerca da incomunicabilidade. transfigurá-la em criação.

olhei para aquele fogo. senti saudade. senti saudade de queimar, senti saudade de arder, senti saudade do morrer. do morrer e do renascer. eu esqueci de renascer. o humano é tão cruel consigo mesmo quando esquece de renascer. renascer é nova vida, é folha em branco – ainda que a folha mais se assemelhe a um rascunho cheio de correções, anotações, rabiscos –, renascer é reinvenção.

reler toda a trajetória. reler com humildade, com dignidade. é necessário adentrar no já vivido, e subverter todos os sentidos. só dai pode nascer coisa nova, vivência nova, instante novo. resignificação!


(ao som de Yann Tiersen tudo parece mais possível).   

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Era só isso.

Vem se aproximando.
Chega num tanto considerável de proximidade que possibilite alguma claridade para o 'olhos nos olhos', e alguma clareza da voz – e do que vem a ser dito – para os ouvidos.  
Encontra.
Olha-o com profundidade e sentencia (sem nenhuma espécie de rodeio):
- Eu te amo!

Ele, de imediato, se assusta.
Toma fôlego, se situa.
(“deve estar bêbada e me confunde com outro”)
Resolve tirar vantagem da situação.
Aproxima-se mais.
Toca delicadamente sua face, acariciando os contornos... E enlaça - com força - sua cintura.

- Você está confundindo as coisas.
(“deve ter retomado a consciência”)
Arrisca:
- Mas... você que disse que me amava.
- Sim, eu disse.
- Então..?
- Então que... Observando a maneira como dança, como se debruça no balcão para pedir bebida, como segura a garrafa ao servir-se; bom, eu não sei, eu me senti te amando. E senti que queria te dizer.

(“maior deixa que essa, não existe!”)
Empurra-a na parede, forçando seu corpo contra o dela.
Ela, com o corpo esmagado, resiste:
- Me perdoe. Eu não quis te criar obrigação para o agir, essa obrigação que sei que vem do que esperam de você. Era só vontade de dizer. Julguei que seria gostoso ouvir. Era só isso. Mas perdão, eu realmente percebo o engano de ter dito.
Ele a olha espumando em raiva:
- Você é louca!

Vira-lhe as costas.
[Não sentiu vontade de voltar a dançar, nem de ir ao balcão pedir bebida.
Foi embora...

... visivelmente atordoado.]

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

cumplicidade.

um. dois. três. quatro.
c i n c o.
seis. sete. oito...
... e mais um tanto de rostos com desenhos desconhecidos - que não fazem parte de meu repertório de retratos já vistos -. 
outro tanto de bancos vazios que lhes fazem companhia. 

companhia para os olhos fixos numa leitura que embala.

companhia para os olhos desesperados pelo relógio que acelera.
companhia para os olhos baixos e marejados pelas frases que não se queria ouvir naquele momento - e talvez, nunca - e daquela maneira - ou de maneira alguma. 

eu percorro esses bancos assumindo cada face, cada expressão e cada sentir; ao passo que não lhes posso oferecer sequer companhia. sou simples passante - e tenho de cumprir com o que se espera de um passante. 

me confundo ante tanta regra que nos separa e tanto sentimento que nos junta. todos entendemos que o todo e o cada de cada um, é também nosso. 
mas há o cartaz amarelo das consciências de Drummond que nos alerta que essa compreensão só pode ser expressa no silêncio.
silêncio de cumplicidade.
silêncio de comunhão. 

sábado, 7 de setembro de 2013

Ainda um tanto estonteada, tenta alcançar mínima compreensão. Quem será este com quem se encontra face a face, corpo a corpo?
Corpo não reconhece. 
(e, ainda que force, é corpo frio, corpo frígido.)

Um cheiro espalhado de coisa que morre, coisa que morre sem fazer barulho.
- ainda que fatigada de lutar pelo contrário –

Fechar os olhos e ninguém conseguir alcançar pelo sentir. (“Proteja-se da tentativa de sentir! Faz tempo que nada mais há por aqui.” - diz-lhe a voz que emana da planta murcha).

Olha para dentro de si, especula o espaço a fim de encontrar nas reminiscências algum instante de delicadeza. Mas, naquele lugar... cuidado não conseguiu fazer morada; afeto não conseguiu encontrar alimento.
Ali... instante em que concepção e morte se confundem, não dando chance pra vida.

Saber que nem tudo deseja viver...
(e que nem toda escolha -  dentre as inúmeras possibilidades de fazer-se - vem acompanhada do desejo de fazer florescer).

Triste?... Um bocado.

Mas hora clara!

sábado, 24 de agosto de 2013

da metáfora "Doce versus Amargo"

Certa vez, comigo ainda criança, disseram-me que para tirar o gosto amargo da boca era preciso comer coisas doces. Lembro-me que, como primeira reação, respondi - quase que numa espécie de protesto: Mas esse gosto ruim na boca estraga até o gosto bom do doce!
Minha cabeça maquinou um tanto mais naquele instante (e nos muitos outros instantes que se sucederam)... Realmente, as coisas doces tem transformado seu sabor quando o paladar está tomado pelo amargo do que comi anteriormente. Mas, são estragados somente os posteriores primeiros sabores; aos poucos, o doce vai retomando seu verdadeiro sabor, que é bom e do qual eu sempre gostei. 
Como existem metáforas que mais são feitas para traduzir-nos a parcela intraduzível da vida; a questão foi retomada sob outros aspectos – aspectos condizentes com as vivências e criações já do passar dos anos.  A questão principal foi acompanhada, como toda boa questão, de vários consequentes questionamentos.
Os doces que vem depois do amargo nada mais são do que uma coisa tomada e interpretada por outra coisa, ou seja, algo distorcido pelo paladar de quem o come. Entretanto, se não houverem sabores sacrificados – e a abertura para novas experimentações, ainda que estas primeiras não sejam tão gostosas – o amargo ficará eternamente nessa boca.
Se antes, ainda que intrigante, o problema pudesse ser facilmente resolvido com um empanturramento irresponsável de doces, sem lhes prestar atenção ao gosto, até que não mais houvesse amargo na boca; hoje, os doces e o amargo com traços humanos, torna a resolução não tão simples assim.
O que me cabe, enfim? Escolher a mim e à recuperação de meu paladar, e assumir, como consequência inescapável, a negação - fruto da distorção do que anteriormente veio – desses inocentes doces verdadeiros que se apresentam a mim com a melhor das intenções? Ou escolher ao não sacrifício do verdadeiro sabor de alguns outros e morrer com o paladar amargo, esquecendo até de como eu gostava de doces?



A saber: não tenho resposta. Prossigo no paladar amargo e já fui cruel com alguns doces bem-intencionados e inofensivos. 

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Sem açúcar, por favor.

Eu gosto doce, mas doce assim? Gosto não. Doce que não sabe ser, sabe? Não sei, faz tempo que não sei. Precisa saber! Olha aí, tão até te tirando as doçuras. Daqui a pouco vai acreditar que só existe o amargo; a amargura. Pega teu café, pequeno e quente. Vai viver a vida! Que, por sinal, tá ali fervendo. Sente o aroma? Sinto o cheiro, sinto o cheiro daquele corpo quente. Mas olha, fixa o que digo: de quente mesmo, só tinha o corpo, e olhe lá! É como o doce que falei adiante. Quente que não sabe ser quente. Mas ai de quem questiona! Difamador! O doce que não é doce, e o quente que não é quente, vão dizer que é você que não sabe adoçar e esquentar. Vai dizer que nunca experimentou esses (des)gostos? Tá que tá repleto disso! Um desfile de coisas apreciáveis, saborosas, prazerosas. Mas, olha que coisa: não o são. E você vai colocar em dúvida seu gosto? Gosta disso. Mas isso assim, gosta não. 

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O amor ainda existe. 

Poderia ser bonito, mas dessa vez, não é.
Pelo amor 
- quem me conhece verdadeiramente sabe bem -
aceito a luta, enfrento o combate, destruo exércitos.

Por amor. Por qualquer tipo de amor.

Mas,
às vezes,
o outro lado não só não luta contigo,
como
- sem o perceber -
se alia a todo o exército de resistências. 

Me perdoe, 
meu amor,
mas eu não vou entrar em combate.
Não agora.
Não sozinha.

Eu corro risco de morrer.
E só eu sei o quanto foi difícil, 
outrora,
viver.

Eu não vou entrar em combate.
Não sozinha.


"(...) levanta e te sustenta, e não pensa que eu fui por não te amar."

terça-feira, 30 de julho de 2013

Palavras de outrem.

Eu realmente fugi, desde o início deste blog, de utilizar-me de palavras/textos/pensamentos que não fossem os meus próprios. Entretanto, ainda no período/processo de decantação/digestão interior para encontrar algum sentido nos momentos vividos recentemente, dei-me de encontro com as palavras de um outrem que foram capaz de traduzir e sintetizar, numa bela metáfora, um pouco da sensação que me toma (e registrarei aqui para recorrer, vez ou outra, como uma daquelas maneiras de se lembrar do que não se consegue esquecer): 

"Quando leio: “Amado, Antônio, o mundo é tão estúpido que as pessoas precisam amar.” Eu tremo. Quando releio “Antônio, amado, o mundo é tão estúpido que eu não posso te amar“. Eu choro."

Obs: Para acesso ao texto completo (http://eumechamoantonio.com/2013/07/29/lembraca-portatil/). Não sei se minha modesta opinião vale - e se vejo grandeza justamente pelo reconhecimento - mas é um texto bonito, para além de qualquer coisa. 

sábado, 20 de julho de 2013

Enjoo, vertigem. Por que tá tudo rodando? É para impedir que eu consiga me agarrar? Você não quis acreditar! Não quis acreditar que encontraria exatamente o que estava procurando. Eu não quero mais vomitar. Mas nem você sabia que estava procurando por isso, não é? Seu sorriso é doce. Melhora o meu dia. E você prossegue na busca. Mergulha mais. Para não acreditar. Encontrou? Se reconhece no que encontrou? Não é bonito. Você não queria o bonito. Não é fácil. Você não queria o fácil. Não é simples. Você não queria o simples. É cruel. É humano. Cuida do teu sentir. Capta o que te escapa. Eu vou desmaiar. Não segurem, deixa que ela caia. Vai doer, vai doer de novo. E de novo. E de novo. Inimagináveis vezes. Isso é força? Aplaudiram. Disseram que ali tinha alma. Pra onde vai com tanta alma? Calma. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Rostos.
Ousados, pedintes, carrancudos, fortes, frágeis, apagados, luminosos, vivos, desejosos, prostitutos, saudáveis, cansados, bonitos, sozinhos, distantes, próximos, brincantes, sérios, chorosos, prestativos, viajantes, alegres, deprimidos, loucos, sensatos, profundos, superficiais, vulgares, vazios, repletos, transbordantes, apaixonados, doces, áridos, apimentados, risonhos, artísticos, belos, maltratados, cruéis, covardes, sem-vergonhas.

Rostos.
Poéticos, sentimentais, altivos, cabisbaixos, noturnos, solares, indiretos, subliminares, misteriosos, limpos, transparentes, vis, comoventes, responsáveis, culpados, acusadores, fugidios, herméticos, divertidos, feios, visionários, sensíveis, frios, quentes, repressivos, maldosos, compreensivos, questionadores, críticos, calmos, arredios, silenciosos, observadores, falantes, hipócritas, contraditórios, libertos, saborosos, nojentos.


Rostos.
Abertos, encarcerados, prisioneiros, medrosos, vagos, sensuais, utópicos, incrédulos, céticos, bestiais, curiosos, interessantes, santos, mentirosos, sinceros, charmosos, aconchegantes, irritantes, reveladores, desconhecidos, ingênuos, minuciosos, ignorantes, espertos, febris, doentes, angelicais, safados, intelectuais, naturais, trabalhadores, plásticos, artificiais, rebeldes, dissidentes, inquisitivos, constrangedores, vergonhosos, selvagens.

Rostos.
Traidores, defensivos, opressivos, cúmplices, fluidos, criativos, disciplinados, simétricos, estranhos, excessivos, intensos, fugidios, insuportáveis, verdadeiros, ilusórios, honrados, destruidores, férteis, transformados, canalhas, transtornados, metódicos, exóticos, singulares, simples, complexos, iguais, indiferentes, ativos, perturbados, passivos, vividos, provocadores, encobertos, traumatizados, prejudiciais, pesados, agressivos, leves.

Rostos.
Limitadores, abrangentes, imensos, bloqueados, comuns, expressivos, inexperientes, discursivos, viscerais, limitados, equilibrados, descontrolados, pobres, avassaladores, adestrados, mansos, possíveis, dispostos, encantadores, pudicos, intuitivos, descaracterizados, atenciosos, confusos, cínicos, ordinários, devassos, imorais, gentis, desérticos, miseráveis, heroicos, gratos, conservadores, urgentes, infelizes, arrependidos.

Rostos.
Sinceros, famintos, nublados, virgens, comunicativos, sugestivos, inseguros, prepotentes, sonhadores, interesseiros, caóticos, desistentes, ansiosos, frenéticos, apagados, aventureiros, instáveis, irônicos, alertas, conscientes, instigantes, fogosos, fingidos, medíocres, imaturos, saudosos, desesperançosos, criminosos, inocentes, perdidos, assustados, instantâneos, chocantes, coloridos, corajosos, perigosos, abandonados.

Em cada rosto, um encontro com minha face. Sou-os.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

De uma mulher para o seu corpo.

Mais do que nunca te sinto meu. Sinto-te eu. Sinto-me.
Você: festa e libertação, peso e prisão.
Já tanto foi culpa.  Já tanto fui culpa.
Castiguei-te em tantas vertentes. Em tantas formas. Castiguei-me.

Acompanha o fluxo cruel das imposições interiores que te faço.
Acompanha...
Não para. Não dificulta.
Não me obriga porque eu não vou. Eu não vou parar.

Reduza-me a osso, se quiseres. Prossiga nestas vertigens.
Cada enjoo é um contato. Feito pele. Mais que corpo.
Uno. Não nos desvincularemos, nem à força.

Se o mal-estar físico é reação ao que te apresento,
Se é reação às vertiginosas vivências que escolho,
Aguenta. Aguenta porque eu não vou parar. 

domingo, 23 de junho de 2013

um vai e o outro fica.

Telefonema para avisar-me que a afetuosa “Tia Dia” se fora. Na estrada, o pensamento rotativo.
- Algo me faz ter certeza de que lá eu tenho que estar -


(... cheiro forte de flor, de flor viva.)


“Marina, que farei sem minha véia?”
        E foi assim que, naquela tarde fria, se apresentaram para mim aqueles olhos suplicantes de uma face já enrugada. Olhei-lhes a fundo. Os olhos se encontrando, não contiveram as lágrimas. Ofereci-lhe meu mais sincero abraço, dentro do meu mais inquieto silêncio. Aquele silêncio de quando o sentir, o pulsar da vida é tamanho, que se veem inundadas (e encharcadas) todas as palavras de nosso limitado vocabulário.
       No toque com aquele corpo frágil, no encontro de sua lágrima com minha pele, compreendi profundamente que a viuvez daquele senhor não significava somente uma mudança de estado civil; sua viuvez era um estado de alma.
     Diante da cena de uma separação sem escapatória – sem nenhuma nova chance, sem nenhuma outra oportunidade – e da dor mais que profunda daquele homem, já sem sua companheira de vida (e forçado a seguir), que me deparei com a essência disso que nomeiam de amor.
        Confesso que tentei reter meu pensamento para as circunstâncias que fizeram aquelas duas personalidades tão distintas (ele tão rabugento, ela tão doce) se encontrarem e se manterem unidas.
        Sim, um casamento tradicional. Sim, uma construção social.
     Mas ainda que tudo fizesse minha razão apontar para uma quase imposição para ambos daquela permanência enquanto dois; a dor dele só fazia meu sentir apontar para a escolha diária daquela ligação. Nada ali lhe deixava mentir: ele escolhia diariamente aquela mulher como sua companheira.
        Era o andar junto que lhe dava força aos pés.
     Compreendi que a separação mais dolorosa é esta que se impõe como fruto do tempo, separação esta, que não é consequência das circunstâncias por nós criadas – frutos de nossas escolhas (conscientes ou não).
        A separação mais cruel é que provém da constatação de que um dia, um vai e outro fica.

Pode a vida apresentar coisa mais bonita e mais atroz que essa constatação?
Um vai e o outro fica.


terça-feira, 11 de junho de 2013

O retorno da miscelânea mental.

A pele arrepiada denunciava frio. Olhei o teto demoradamente e levantei-me. Despi-me. Fui nua até o espelho mais próximo e inspecionei cada milímetro de meu corpo. Acho que engordei. Já no banheiro senti-me enjoada e fiquei poucos minutos de cócoras frente ao vaso sanitário. Certamente um raciocínio julgando-se certeiro me diria: deve estar grávida. Para este, me viria somente uma resposta para apaziguar-lhe o espírito: impossível, não estou fértil. Se bem que... um filho talvez fosse legal. Uma companhia. Um grito ensurdecedor da criança que mora ao lado vem promovendo rupturas. Não, possível criança que ainda não existe, não se assuste. Como posso querer uma companhia na infertilidade, não é mesmo? Pergunto a um terceiro: você me acha louca? Não sei, a pouco deixei que me convencessem de minha loucura. Todo monólogo interior fluído que me toma. Todo enjoo. Toda criança. Todo arrepio. Toda frieza. Toda extrema sensibilidade. Toda flor da pele. Retomo e tenho a certeza de que estavam certos. Vou para debaixo do chuveiro. O frio prossegue. Coloco-o no modo desligado. O enjoo aumenta. Hoje faz sete anos que você se foi. Ano passado eu pude chorar mais a sua falta. Eu ainda estava sendo tomada como louca. Desliguei a razão. Não sei se acredito nela. E escolher da mesma meu instrumento de trabalho talvez seja o protesto de minha irracionalidade, minha resistência. Não tenho ciência, temo a Ciência. Resisto ao frio. Eu nunca senti verdadeiramente frio. Você já sentiu? Pergunta incômoda. Não gostam das minhas perguntas. Hoje a rede de esgoto da casa entupiu. A casa inteira cheirou a esgoto e evidenciou a podridão. Ao lado do último lugar em que morei, em outra cidade, se encontrava uma caixa de gordura. Ali se instaurava a sujeira de todo o condomínio. Vez ou outra alguém limpava. Vez ou outra eu me dava conta de como eu sou suja. E era impossível tirar tal constatação dos meus dias. Sai de lá, talvez como louca e pesada, mas não como suja. E eu sou mesmo suja. Outra constatação para essa noite fria: moro novamente próximo ao cemitério e à Avenida Saudade. O grito das crianças tem razão. Ter um filho não é uma boa ideia. Não se pode ser companhia na infertilidade. 

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Riscos.


Minha cabeça girava, girava em tamanha velocidade que me causava náuseas.

Procurei distrair-me
(“Distraídos venceremos”).  

Sentei e sorri... Parecia-me a única forma de terminar dignamente o dia.
Encostei levemente meu lábio naquele copo e uma voz conhecida me alertou: “Você está correndo risco!”.  

Engoli o líquido a seco.

Eu sei - eu sempre soube - o perigo me espera ali na esquina. Mas não!...Não naquele momento! 
Repetia mentalmente:
“Eu corro risco!
Corro, corro, mas nada me alivia do maldito risco!”.

Tentei convencer-me da facilidade que envolve levar os dias adiante... Porém, bem sei, o risco leva ao medo, e o medo paralisa.
Você sente o significado do pânico, da pane? Eu vivi.


Entretanto, era preciso seguir. 
  Penso que meus caminhos sempre foram e sempre serão tangenciados pelas muitas (e grandiosas!) dúvidas. Dúvidas quanto ao que fui e ao que foi, ao que sou e ao que é, ao que serei e ao que será. E nessa linha tênue entre meus caminhos percorridos interiormente e as trajetórias pedidas pelo exterior, procuro achar um pequeno equilíbrio nessas maneiras de fazer-me. 
   Saber que os lugares, as situações e as relações são também o que delas fazemos, me liberta e me assusta. Escolhas são mistos de libertação e esvaziamento.
   Observo-me em meio a traços e a gestos, nem todos conhecidos, identificáveis, interpretáveis. São maneiras. São outros. São possibilidades e impossibilidades de ser-me e ser outros.

domingo, 2 de junho de 2013

Perceber que, para além de todas as feridas que produzimos, as marcas que prosseguem em nossa pele ainda revelam o que nos ultrapassa...

E o que nos ultrapassa escapa desse círculo vil – repleto de condições insalubres - em que estivemos imersos.


Nada ali propiciou possibilidade de escolha pela sobriedade, éramos embebedados r o t i n e i r a m e n t e pelas relações doentias (que prosseguem se estendendo, se repetindo, naquele lugar).

Aquele lugar...
Aquelas relações...

Escapam-me.

Escorre por entre meus dedos, o que um dia escorreu pelos meus olhos.

Nada se pode fazer por aquela gente.
É naquilo que eles acreditam se fazer... Ainda que, em seus olhos, eu só consiga enxergar, o quanto se desfazem.

Fecho os olhos, forço a cabeça em minhas tentativas de compreensão, de entendimento.

Escorre.

Tudo ali escorre, é líquido,

Escapa.

Todos tentam algo em que se agarrar.

Mas nunca me pareceram cogitar se agarrar no valor do cuidado e da construção.



"O amor é um combate, vou lutar por muito tempo. Até o fim"

(KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. p. 126)

domingo, 28 de abril de 2013

Compromisso.


Não! Aquilo era loucura! Que acontecia com essa mulher?
 Suas posições pareciam que sempre escapavam aos meus entendimentos.

 - Um dia olhei no espelho e assumi um compromisso. Um compromisso comigo mesma. Eu sabia que seria difícil levá-lo adiante. Mas assim mesmo, eu o assumi.  Sabia bem que enfrentaria por diversas vezes um ódio de mim mesma por tê-lo assumido assim, tão categoricamente. Esse compromisso tinha uma ligação intrínseca com a luta pela minha felicidade, ainda que o sofrimento fosse consequência natural do processo. Esse compromisso acarretaria em estar em frequente contato interior, e obviamente, em contato com todas as minhas contradições. Acarretaria também em não sentir culpas. E ainda que fosse inevitável senti-las diariamente, diariamente eu teria de expurgá-las porque eu sabia que aquelas culpas eram ancestrais - provinham de uma condição muito anterior ao meu nascimento, mas me acompanhariam feito cães de guarda. Esse compromisso me demandaria coragem e quando eu o assumi eu sabia que eu era uma pessoa repleta de medos.  Ele não permitiria que as pessoas – mesmo as que mais me amassem – conseguissem captar meu movimento e encontrassem-me em contornos/definições claras; e isso tornaria extremamente difícil a comunicação pelas palavras, porque tudo parecia muito ligado ao sentir, ainda que o compromisso fosse fruto da minha mais extrema razão. O compromisso não deixaria que eu fosse contemplada inteiramente numa opinião só, numa corrente só, num conceito só; o trabalho “só” de apreensão de sentidos sempre me pareceu muito mais sedutor e fértil.   Sabia que ao ouvir-me plenamente, e não me permitir trair-me, nada seguiria uma linha contínua e cada passo poderia contradizer enormemente o anterior – mas isso me possibilitava liberdade tremenda de voltar atrás e de seguir adiante – e eu bem sabia que o adiante, que o horizonte, nada tem a ver com uma linha reta (me parece que aprendi isso com o mar). Assim sendo, eu sabia que com muita frequência eu seria taxada de incoerente – incoerência e contradição são palavras que as pessoas misturam numa só (e isso me parece bastante perigoso!). Esse compromisso permitiria que minha gargalhada fosse muito mais sentida e muito mais gostosa, mas meu choro também – ou seja, nada me passaria batido, porque isso era consequência certeira da minha escolha: estar integralmente em cada momento, em cada circunstância, em cada mínimo gesto e intenção. O compromisso não me deixaria ter tantas certezas, a dúvida seria muito mais companhia. Ele não permitiria abster-me de sentir, de pensar, de sonhar e de amar – porque sem isso eu não viveria, quanto menos o viveria.  Eu sabia que estaria em constantes brigas comigo mesma, e teria muita raiva de decisões que não teriam nenhum propósito ou sentido, não fosse o compromisso assumido. Confesso que fica difícil categorizar esse compromisso numa coisa só, tamanho são as implicações e os sentimentos que me levaram e me levam diariamente a mantê-lo enquanto tal. Ele, acredito, tenha muito a ver com o medo maior da falta de coerência entre o sentir/pensar e o agir/lutar, com o medo de trair-me - e consequentemente, trair todo o em torno -, do medo de não saber o que brota de dentro e aceitar como meu o rolo compressor das opiniões externas. Esse compromisso me permite estar em paz, ainda que eu esteja no olho do furacão. A paz maior é a paz consigo. Se isso for loucura, eu não peço para ser perdoada. 

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Rememória em constatação.


"Seria muita ousadia de minha parte dizer que sempre há um mínimo vão que não se preenche?"

(não era ousadia de meus olhos, nem de meu olhar saturado e receoso).

Pois é menino,

sempre há um mínimo vão que não se preenche.


...uma respirada profunda para os momentos que hão de vir...fôlego!





.Mas não ensaie suas falas, nem restrinja seus assuntos.

sábado, 23 de fevereiro de 2013



"Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito,
se elabora?"
                                                 (GULLAR, Ferreira; Toda Poesia, p.28)

Eu reinventei meu silêncio para poder voltar a falar. Após essa pausa, cuja continuidade foi duramente disputada com a necessidade de recomeçar, eu vou, eu voo...
Novamente.

Caminhando por ruas bastante claras, compreendo que o privilégio (ou a tortura) de “não deixar nada passar”, também me foi apresentado como escolha; e eu nunca cogitei optar pelo “Não!” ou mesmo pelo “Um pouco menos...”.  Entendo que a vida foi se construindo na intensidade da minha sutileza, mas também, no detalhe do meu exagero. Eu vi muito...
Sinto muito.

         Se fui mar bravio ou águas serenas, já não mais me importa saber, confesso. O estranhamento e o reconhecimento, no mesmo passo, em cada situação vivida (ou a ser), em cada personagem cotidiano, em cada sensação e sentimento que me excede, são condições desse passeio que, hoje, percebo e acato...
           Eu gosto.


quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Ela não queria ser entendida.


Ela me implorava:
“Pare de me ler por entre cifras!”

Tento hoje procurar pela nota;
Por essa nota incerta,
Caminho incerto,
Eu incerto.

Às vezes me canso
De tantas curvas,
Queria que fosse mais linear
Que não me surpreendesse tanto.

Queria que deixasse
O esperado se cumprir,
Por si só.

Em alerta,
Vivo ofegante,
Correndo sempre atrás
Do que me escapa.

Eu bem sei quanto me encanta.

Mas me enveredo tanto
Por seus labirintos,
Que esqueço de seguir
A minha estrada.

Seu sussurro,
Assim bem perto,
Quase que me
Ensurdece...
A pele.

A pele,
Assim tão frágil,
Quase que me
Quebra...
O chão.

O chão,
Assim tão firme,
Me acovardeia...

Todo sim
e
Todo não.