sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Jerónimo.

"Quando beirava os 73 anos, Jerónimo, o avô materno de Saramago, sofreu um acidente vascular cerebral. O infortúnio não parecera tão grave de início, mas depois se revelou preocupante. O médico recomendou, então, que o paciente abandonasse a aldeia onde morava e se internasse num hospital de Lisboa. Jerónimo - um homem rude, analfabeto, que criava porcos - dividia com a mulher uma casa simples, de apenas dois cômodos e chão de barro. No quintal, plantara umas quantas oliveiras, figueiras e pereiras. Mal a carroça que o levaria à estação ferroviária chegou, o velho, pressentindo que não retornaria, saiu do casebre e abraçou cada uma das árvores. Não emitiu nenhuma palavra. Somente chorou baixinho e enlaçou a minúscula floresta. 
O episódio me impressiona sobretudo pela contenção. Para se despedir dos seres mansos e quietos que lhe encheram os dias de sentido, o camponês optou por um gesto igualmente manso e quieto. Não lamentou o rumo que as coisas tomaram, não amaldiçoou as transformações que presenciava nem as que deixaria de presenciar, não fez elogios às árvores, não recordou os bons momentos que compartilharam. Resignou-se em dizer tudo o que gostaria sem dizer nada. Ironicamente, tempos depois, o neto de Jerónimo se notabilizaria justo pelo contrário: pela necessidade incontornável de atar a vida às palavras. Não quaisquer palavras, é claro, mas ainda assim palavras - e copiosas, fluidas, abrangentes.
Ocorre que em determinadas circunstâncias, ações similares às do avô tem impacto maior que posturas como as do neto. Há despedidas que não encontram tradução. O que falar diante de um amigo que se muda para bem longe, um amor que morre, um projeto querido que se interrompe? Às vezes, o melhor - o mais preciso e eloquente - é dar adeus em silêncio."
(trecho da Carta de Redação do último exemplar  - nº 192, agosto de 2013 - da Revista Bravo! cuja reportagem de capa homenageia José Saramago).


como mostra a referência que coloquei abaixo do trecho transcrito, essa revista chegou a mim em agosto de 2013. até o dia de hoje - já no centro do mês de novembro - eu a olhava e postergava essa leitura. hoje li. hoje, quem sabe, eu compreenda algo, mesmo que de forma pouca.
devo dizer, as palavras referentes ao lidar com o adeus, já me diziam respeito desde 2006 (isso se já não é possível dizer que o adeus nasça conosco no momento do próprio parto e nos acompanhe até o fim da vida). como uma bactéria alocada, porém não manifesta, convivi com elas. ano passado, também por elas  (por que não acredito em reduções fáceis e baratas), adoeci. dores não explicáveis, dores não detectáveis, dores não compreensíveis; dores não traduzíveis, enfim. 
após esse episódio- e algumas justamente por conta dele - outras despedidas me chegaram. mas ainda assim, eu não seria capaz de me encontrar tão integralmente - tão completamente - nessas palavras; me encontraria em partes, certamente. me emocionaria, mas isso ainda não me levaria a compreensões.

como alguns sabem, minhas digestões são demoradas. 

fim de outubro de 2013: mais um adeus. não qualquer adeus. adeus que me faz retornar à 2006 e reviver anos passados, anos experienciados, anos vividos, anos de pele, anos de alma, anos de entrega - no que mais se encaixa ao que acredito que deva ser estar aqui, em vida. 

com a partida de minha avó, outras despedidas difíceis me chegam em lembrança. 

seus últimos anos lhe impossibilitaram a fala. quanto a mim, tagarelei durante esses anos ao pé de sua cama. o último dia que a vi (ainda viva), minha escolha - já no sentimento de que naquele momento era preciso que eu lhe dissesse adeus - foi pelo silêncio.
mesmo no momento a sós com o papel, eu já não sentia aquela comunhão tão forte com as palavras - a algum tempo venho sentido essa distância. 

nem todo adeus me ocorreu em silêncio. em momentos senti necessidade do "adeus em silêncio", em outros senti necessidade de dar "adeus ao silêncio". 
longe de colocar minha relação com as palavras em pé de igualdade com Saramago ou com Jerónimo, entendam. longe também de concordar que o silêncio é sempre brando, manso e calmo - na maior parte das vezes, o meu se constitui exatamente no contrário.

me boto a pensar nessas vivências que ultrapassam compreensão e tradução. me boto a pensar nas maneiras de lidar com a dor - e também com a alegria! -. me boto a pensar naqueles que tem por constante necessidade vomitar palavras. me boto a pensar naqueles que tem por constante necessidade engolir silêncios. me boto a pensar em imposições de um suposto destino. me boto a pensar no potencial de nos refazermos, de nos recriarmos. 

seja com o suporte das palavras, seja com o suporte do silêncio, tudo é maneira de lutarmos por sentido, de nos comunicarmos com o vivido e com as potencialidades do vir-a-ser. 


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